Lançado no Brasil em outubro, o filme Coringa, estrelado por Joaquin Phoenix, choca e nos propõe diversas reflexões acerca da vida, desde o papel do afeto na infância até as expectativas sociais e individuais do que devemos atender quando adultos. Ao meu ver, não é um filme simples, e toda e qualquer tentativa de buscar um significado específico seria reduzir as diversas possibilidades interpretativas que ele oferece — e isso talvez seja o maior mérito de filmes profundamente simbólicos.
Arthur Fleck (Coringa) é um sujeito claramente atormentado, que possui uma risada patológica, magistralmente criada por Phoenix, em que são mesclados um olhar de tristeza, apesar do sorriso nos lábios, com um riso compulsivo e até irritante. Sua mãe o chama carinhosamente (e infantilmente) de Happy (Alegria) e nutre uma fantasia (ou seria realidade?) de que Arthur seria filho legítimo de Thomas Wayne, pai de Bruce Wayne, aquele que se transformaria no Batman após testemunhar o assassinato de seus pais em Gotham City.
Perda de tempo, ao meu ver, descobrir o que é verdade ou fantasia na trajetória de vida de Fleck, uma vez que são justamente esses vaivéns psicológicos, que misturam realidade e fantasia, que o farão Coringa (Joker em inglês, que também poderia ser traduzido como Palhaço, Brincalhão, etc.).
Não à toa o filme choca, talvez pela crueldade de Fleck ao matar pessoas sem expressar qualquer tipo de emoção, tal como um sociopata, ou talvez pelas agruras pelas quais ele enfrentou socialmente, psicologicamente e moralmente, como ser maltratado por sua mãe em sua infância, até ser humilhado publicamente em um programa de rede nacional.
Se tudo isto nos toca, nos choca, nos sensibiliza e até nos atormenta, é porque reverbera de alguma forma dentro de nós, como se o nosso “Coringa interior” se identificasse, por assimilação ou repugnância, com o Coringa cinematográfico. Em outras palavras, o fato do filme mexer conosco, com as nossas emoções, não é uma aleatoriedade, pelo contrário, isto ocorre porque o personagem dialoga diretamente com o nosso universo psíquico, coletivo e individual.
A narrativa do filme é complexa e o título deste artigo tem por objetivo ser provocativo, mas não literal. Não espere que o Coringa nas organizações seja um sujeito estereotipado, claramente atormentado, com risadas patológicas e comportamentos compulsivos.
O Coringa das organizações é aquela pessoa literal, que tem muita dificuldade de encontrar significados que vão além de gráficos e números — desde quando a vida se explica graficamente?
O Coringa das organizações é aquele que adota práticas A ou B porque “o mercado está fazendo”, sem refletir sobre o sentido das coisas — um dos exemplos atuais é a “doença” da redução do plástico, quando deveríamos estar discutindo, com maior ou mais intensidade, a reciclagem do plástico.
O Coringa das organizações é aquele que justifica a ação das demissões em massa para “proteger” outros empregos — criando, paradoxalmente, um ciclo negativo para todo um contexto econômico.
O Coringa das organizações é aquele com falas estereotipadas, e até mesmo vícios de linguagens dos quais ele se vangloria, que intenciona, por vezes ingenuamente, comover pessoas.
O Coringa das organizações é aquele se esconde atrás de uma imagem, eventualmente usando de sarcasmos e comportamentos de desdém pelos outros, a fim de esconder seu infinito vazio emocional, e que provavelmente por trás desta máscara, não passa de um ser humano médio, tal como Fleck.
O Coringa das organizações é aquele que busca constantemente culpados externos, e apenas isto, pelos seus erros e fracassos, sem permitir-se refletir simbolicamente sobre os diversos significados das coisas e desconsiderando suas próprias idiossincrasias.
O Coringa das organizações é aquele que ignora a existência de pessoas, buscando tão somente expressar suas vontades por meio de ações intempestivas, tapando os ouvidos para uma escuta genuína de pares, líderes e/ou subordinados, em outras palavras, é aquele que desrespeita os outros por considerar que “está fazendo o melhor para a organização”.
É uma pena que, tal como no filme, aqueles que mais precisam de ajuda psicológica, social, relacional, sejam exatamente aqueles que mais resistem em buscá-la.
Você conhece algum Coringa corporativo?
*Rafael Rodrigues é psicoterapeuta, palestrante corporativo e fundador da Solução Ativa.