“Impossível tirar 30 dias de férias”; “Estou de férias, mas faz de conta que ninguém me viu aqui”; “Estou super triste, talvez até seja depressão. Mas, se eu me afastar neste momento, pode não pegar bem”. Já viu ou viveu situações como essas?
O termo leaveism surgiu em 2013, descrito pelo pesquisador Dr. Ian Hesketh, da Universidade de Manchester. O fenômeno descreve o comportamento dos funcionários ao usar seu banco de horas, férias, feriados e dias de descanso quando estão doentes demais para irem trabalhar. O termo também abrange as situações nas quais os trabalhadores levam as tarefas que não conseguiram “dar conta” em horário remunerado para casa ou mesmo para as ocasiões de descanso, como as férias. Também pode incluir trabalhadores que usam dessas licenças para cuidar de dependentes, incluindo filhos e/ou parentes idosos.
Esse fenômeno de não conseguir se desconectar das demandas do trabalho, nem mesmo nos momentos destinados para o descanso, revela que existe uma população exposta a uma sobrecarga mental. Na literatura, o leaveism parece estar entre o presenteísmo (quando o trabalhador comparece ao trabalho mesmo estando doente ou sem sua capacidade plena de trabalhar) e a falta por motivo de doença.
Da mesma forma como outros fenômenos que teêm emergido no mundo corporativo, como a “grande renúncia” (great resignation) e o “desistir silenciosamente” (quiet quitting), o comportamento que caracteriza o leaveism exige uma reflexão mais aprofundada, tanto das organizações quanto dos trabalhadores, para que as suas razões sejam conhecidas.
O período pós-pandêmico tem exigido muitas adaptações a novos modelos de trabalho e inúmeras mudanças têm acontecido em uma intensa velocidade. Em especial, o trabalho anywhere e a hiperconectividade trazem um novo desafio às empresas, a sobrecarga cognitiva. Isso requer a análise das condições de trabalho e da ergonomia cognitiva. Afinal, qual o limite da “sobrecarga mental”? Essa preocupação se intensifica quando as pessoas não podem ou não conseguem exercer seu “direito de desconexão”.
É possível que o leaveism traga consigo o “medo de desconectar”, como uma resposta à insegurança no emprego, oportunidades de carreira reduzidas e políticas rígidas de afastamento por motivo de doença. Além disso, pode revelar características do próprio indivíduo, como autocobrança e perfeccionismo excessivos. Muitos gestores de RH e os próprios funcionários reconhecem a prática do leaveism, mas não tomam nenhuma atitude em relação a isso.
Na década de 30, o filme Tempos Modernos, de Charles Chaplin, satirizou a interação homem-máquina na linha de produção do sistema fordista. Naquela ocasião, a perspetiva do adoecimento físico era evidente, uma vez que o ritmo intenso da linha de montagem demandava “mais braços” do que o homem realmente tinha. Nos dias atuais, é como se a carga de trabalho exigisse mais capacidade mental/cognitiva do que realmente é possível ter. Os novos esquemas de trabalho têm afetado a capacidade mental das pessoas.
Isso tem sido evidenciado pelo número crescente de afastamentos por transtornos mentais, que cresceu 30% desde 2020, segundo a startup Closecare. Até 2030 os custos diretos e indiretos da saúde mental poderão superar US$ 6 trilhões anuais, conforme o Global Health Care Outlook, realizado pela Deloitte. Esse valor é maior do que o custo do câncer, diabetes e doenças respiratórias crônicas juntos.
Toda a discussão teórica sobre o fenômeno do leaveism gira em torno da reflexão sobre o mundo contemporâneo do trabalho, que inclui a intensificação do ritmo/carga, com jornadas extenuantes, a transformação digital e o aumento aumento do uso de tecnologias de comunicação da informação (TICs) e debates em torno da gestão de recursos humanos sustentável.
Superar esses desafios exigirá que os gestores de RH e os funcionários reflitam sobre o que está ocorrendo. As empresas precisam adotar ações de “recursos humanos sustentáveis”, implantando medidas e políticas para coibir práticas de trabalho insustentáveis do ponto de vista humano, como metas inatingíveis e expectativas de desempenho sobre-humanas. Ações simples como a proibição do envio de e-mails e mensagens fora do horário de trabalho, que são geradores de ansiedade, também podem repercutir de forma positiva. Por outro lado, os indivíduos precisam refletir sobre suas escolhas, limites e significado do trabalho em suas vidas. É preciso adotar estilos de vida mais saudáveis, estabelecendo bem as fronteiras entre o trabalho e a vida privada.
Diante de tantos novos fenômenos ocorrendo no mundo do trabalho e afetando enormemente a força produtiva, é preciso agir. Afinal, estamos diante do risco de devastação e escassez de um recurso não renovável e essencial para o desenvolvimento global: o humano.
* Ana Carolina Peuker é fundadora e CEO da Bee Touch, mental healthtech especializada na mensuração, rastreamento e predição do risco psicossocial e em avaliações psicológicas digitais.