Por que os bancos devem priorizar a interoperabilidade de pagamentos na América Latina?
Fazer sistemas informáticos “conversarem” entre si dentro de uma organização de grande porte é uma tarefa complexa
O conceito de interoperabilidade e sua aplicação
Fazer sistemas informáticos “conversarem” entre si dentro de uma organização de grande porte é uma tarefa complexa. Assegurar a comunicação e a troca de dados entre empresas distintas é ainda mais difícil. Esse é o significado de interoperabilidade – e fazê-la funcionar constitui um desafio em todo o mundo.
A interoperabilidade nos pagamentos ainda é elusiva. Devido à falta de coordenação entre bancos e câmaras de compensação, pagamentos transfronteiriços podem levar de três a cinco dias úteis para serem concluídos. Que medidas podem ser adotadas para acelerar e permitir uma interação perfeitamente integrada entre diferentes sistemas de pagamento?
Panorama da interoperabilidade de pagamentos na América Latina
Atualmente, a interoperabilidade de pagamentos na América Latina varia e gira em torno principalmente do processamento de cartões e de quitações em tempo real. O Brasil e o México são os líderes desse setor. Os países mais atrasados nessa área incluem Peru e Argentina, ao passo que Colômbia e Chile estão em um estágio intermediário.
Brasil: O Banco Central do Brasil foi uma das primeiras instituições da região a promover a interoperabilidade. As discussões iniciaram-se em 2010 com foco na interoperabilidade entre processadores de pagamentos e recentemente evoluíram para abordar pagamentos em tempo real.
Atualmente, o Brasil tem uma das infraestruturas de transferência em tempo real mais avançadas da região. Altamente populares, as TEDs permitem transferências interbancárias de baixo custo entre 6h e 17h. Já os DOCs, que são transferências eletrônicas de baixo custo liquidadas no dia seguinte ao da operação, estão se tornando menos populares devido ao seu limite de transferência de R$ 5 mil.
O grupo de trabalho para pagamentos em tempo real do Banco Central visa melhorar a interoperabilidade ao permitir este tipo de transação 24 horas por dia, 7 dias por semana, usando trilhos fornecidos por bancos, instituições não bancárias, empresas de telecomunicações e redes de cartões. Isso deve ampliar o uso destes pagamentos para novas verticais, reduzir custos e melhorar a experiência geral do usuário. A estrutura deve ser anunciada durante o segundo semestre de 2018.
México: O México é um dos países mais avançados do mundo em termos de pagamentos em tempo real. Recentemente, o Banco do México (Banxico) implementou, por meio da SPEI, sua rede de pagamentos eletrônicos interbancários, um sistema de quitações momentâneas disponível 24 horas por dia em todos os dias. O serviço permite que os usuários transfiram dinheiro para contas bancárias, cartões de crédito e débito e até mesmo números de telefone celular. Todos os pagamentos são rastreáveis por meio do site do Banxico.
No entanto, a adesão aos pagamentos em tempo real via SPEI por parte dos consumidores tem sido lenta: estima-se que foram feitos US$ 8 bilhões em transferências de baixo valor via SPEI em 2018, ao passo que os pagamentos em espécie somaram quase US$ 24 bilhões. Isso mostra a viscosidade cultural do dinheiro físico e os esforços que os bancos deverão empreender para evangelizar os sistemas eletrônicos.
A falha de segurança ocorrida na SPEI em maio de 2018, na qual hackers fizeram transações fraudulentas no valor de aproximadamente US$ 16 milhões, destaca as preocupações de segurança em torno de métodos de pagamento em tempo real. Esse incidente lamentável pode prejudicar consumidores que estejam no processo de desenvolver a confiança necessária no SPEI para usá-lo regularmente.
Colômbia: A Colômbia foi um dos primeiros mercados latino-americanos a implementar uma verdadeira solução de compensação automática (ACH). Por meio do “PSE botón de pagos”, sistema que permite pagamentos on-line por meio de contas bancárias, os colombianos contam com maior flexibilidade e conveniência ao pagar suas compras pela internet. Apesar dessas vantagens, não há um consenso regulatório claro sobre a criação de um sistema de pagamento instantâneo na Colômbia.
Em 2016, a agência reguladora financeira do país estabeleceu o marco operacional e jurídico para as chamadas “Sociedades Especializadas en Pagos y Depósitos Electrónicos” (SEDPE). No âmbito desse marco, instituições não bancárias recebem uma licença para que prestem serviços de depósitos e pagamentos. Esse modelo permite a criação de carteiras digitais e facilita a integração de clientes sem conta bancária. A MOVII foi a primeira SEDPE a entrar em operação na Colômbia (11 de julho de 2018).
Embora crie uma estrutura para a ampliação de serviços financeiros, a regulação sobre as SEDPE não faz nenhuma menção à interoperabilidade. O resultado provável será a criação de várias carteiras digitais de circuito fechado – ainda que a intenção dessa iniciativa seja nobre, esses produtos poderão não alcançar seu potencial pleno caso não ofereçam interoperabilidade.
Argentina: Com atraso de cinco anos em relação ao Brasil, a Argentina está finalmente avançando para a descentralização do processamento de cartões de crédito. O governo emitiu uma ordem formal para que o Prisma Medios de Pago, o único adquirente da Visa, com 75% de participação no mercado, fosse vendida por seus 14 bancos proprietários. O governo pretende romper o acordo de exclusividade entre adquirentes e redes de cartões com o objetivo de permitir a entrada de novos concorrentes.
Em 2016, o Banco Central Argentino (BCRA) habilitou dois novos métodos de pagamento instantâneo gratuito, o “Debito Inmediato” (DEBIN), que permite a portadores de cartões de débito enviar imediatamente pagamentos aos destinatários, e o “PEI”, sistema que possibilita pagamentos interbancários em tempo real por meio de uma carteira digital, de um dispositivo mPOS ou da internet. Sem o apoio ativo dos bancos, no entanto, os esforços de marketing para promover essas iniciativas têm sido anêmicos e a adesão por parte dos usuários tem sido mínima.
Chile: O final de 2017 foi marcado por uma nova regulação segundo a qual o Transbank – até então o único adquirente do Chile – deixaria de ter o monopólio, proibindo o acordo de exclusividade vigente à época entre bancos e adquirentes. Em outubro de 2017, o Multicaja tornou-se o primeiro concorrente, obtendo uma licença de aquisição diretamente da Mastercard. Levará algum tempo para que novos concorrentes ganhem uma participação relevante no mercado, mas muitos reconhecem a nova regulação como um esforço necessário para impulsionar a interoperabilidade e a concorrência.
Peru: Entre os grandes mercados da América Latina, o Peru é ao mesmo tempo o país mais e menos avançado em termos de interoperabilidade de pagamentos. A VisaNet ainda opera como a única rede adquirente da Visa e tem 70% de participação no mercado, mas esse cenário está mudando, já que a empresa está sendo pressionada pelo governo a abrir seus trilhos para outras redes e agregadores.
Por outro lado, o país conta com uma das plataformas de pagamentos móveis interoperáveis mais avançadas do mundo, a Bim. Lançada em fevereiro de 2017, a Bim é uma carteira móvel apoiada pela maioria dos bancos locais, possibilitando pagamentos P2P interoperáveis, recargas de celulares, pagamentos de contas e outros serviços. Mais uma vez, a adesão por parte dos consumidores é baixa, visto que os bancos têm preferido centrar seus esforços de marketing em soluções de carteiras de circuito fechado, como a BBVA Wallet e a Yape, do BCP.
No que se refere ao processamento de cartões, os governos entenderam a necessidade de implementar a interoperabilidade e vêm fazendo esforços para promovê-la. Graças à intervenção regulatória, o monopólio dos adquirentes na Argentina, no Peru e no Chile deve chegar ao fim este ano, abrindo espaço para modelos e fornecedores alternativos de sistemas de processamento de pagamentos por cartão.
A não interoperabilidade ainda persiste na região em dois segmentos principais: carteiras digitais e transferências interbancárias. Entre os desafios existentes podemos citar uma infraestrutura de pagamento deficiente e a falta de mão de obra especializada e restrições regulatórias, mas o principal fator limitante é o medo dos próprios bancos de adotar a interoperabilidade e a incapacidade de perceber seu verdadeiro valor.
Carteiras digitais
A maioria das carteiras e plataformas digitais desenvolvidas por bancos, como a BBVA Wallet, a Aval Pay, a Yape e a CitiBanamex Pay, consiste em sistemas de circuito fechado. Em geral, essas soluções se limitam às suas respectivas bases de clientes e só podem ser usadas nos estabelecimentos comerciais participantes. Essa não interoperabilidade mina o valor da rede ao limitar seu potencial de escala. O dinheiro físico – o principal método de pagamento interoperável – ainda representa até 90% das compras no varejo em alguns mercados, o que significa que a não interoperabilidade acaba com a competitividade de qualquer método de pagamento emergente.
Por outro lado, o Samsung Pay ou o Apple Pay estão disponíveis para os portadores de cartões de qualquer banco participante, enquanto plataformas não bancárias como RappiPay, MercadoPago e RecargaPay permitem múltiplas modalidades de financiamento (cartão de crédito, cartão de débito ou até dinheiro em espécie). Ao permitir o dinheiro físico como método de financiamento, essas plataformas capturam o negócio de clientes sem recursos.
Transferências interbancárias
Como os bancos lutam para oferecer cartões de crédito para a maioria dos seus clientes e os adquirentes não conseguem oferecer taxas acessíveis a pequenos comerciantes, as contas bancárias representam um elemento cada vez mais importante do ecossistema de pagamentos. Atualmente, no entanto, as contas bancárias ainda são pouco exploradas como meio de pagamento devido à interoperabilidade limitada.
Para ampliar as opções de métodos de pagamento, as instituições financeiras devem buscar esquemas que não dependam exclusivamente de cartões. Uma opção é implementar um sistema de transferências bancárias interoperáveis. Isso ajudaria as instituições financeiras a absorver as centenas de bilhões de dólares gastos em dinheiro físico todos os anos em compras no varejo em verticais como estacionamentos, pedágios, postos de gasolina, transportes públicos, varejistas de pequeno porte, recargas de celulares e pagamentos P2P.
A Visa, a Mastercard e a AmEx entendem que, nos moldes atuais, os cartões de pagamento não podem alcançar essas verticais altamente caracterizadas por transações em espécie. Essa constatação explica seus esforços de modernização por meio da implementação de cartões sem contato. Todas as três redes de cartões emitiram ordens oficiais para que seus emissores e adquirentes da região adotem a tecnologia sem contato. Isso sinaliza aos bancos locais que agora é o momento de desenvolver transferências bancárias interoperáveis em tempo real.
De acordo com a pesquisa CGI Global Payments Research, “as transferências de conta a conta deverão se tornar o maior instrumento único [de pagamentos] até 2022, superando o uso individual de cartões de débito, crédito e sem contato”. Em última análise, as transferências bancárias podem proporcionar aos consumidores maior acesso a serviços financeiros e oferecer a comerciantes melhores taxas de desconto. Essa mudança ampliará o mercado de pagamentos eletrônicos e fortalecerá as economias ao promover a formalidade entre estabelecimentos comerciais que atualmente operam por baixo do pano.
A influência dos aparelhos móveis
Nas últimas décadas, a falta de interoperabilidade fez com que os bancos não se sentissem pressionados a oferecer pagamentos em tempo real e repassassem para as redes de cartões a tarefa de facilitar pagamentos. Atualmente, a relação entre os bancos e seus clientes passa por grandes mudanças. À medida que se tornam mais informatizados, os consumidores demonstram uma autonomia sem precedentes sobre suas finanças e uma redução significativa na fidelidade a seus bancos. Trata-se de uma combinação perigosa para bancos tradicionais, que enfrentam concorrentes que operam apenas no meio digital e cujo contato com os clientes ocorre principalmente por meio de telefones celulares.
De acordo com projeções da eMarketer, o número de usuários de smartphones na América Latina crescerá para mais de 240 milhões até 2019. À medida que os latino-americanos dominarem o uso de aplicativos móveis como o Venmo, a demanda por serviços gratuitos semelhantes aumentará. A rapidez dos pagamentos e o custo competitivo tornam-se os principais indutores da fidelidade. No Brasil, por exemplo, os consumidores estão acostumados a usar aplicativos móveis para fazer transferências em tempo real a baixo custo. Os bancos digitais atualmente oferecem pagamentos interbancários sem nenhum custo.
Ao implementar uma infraestrutura de transferências interbancárias em tempo real e disponível 24 horas por dia e 7 dias por semana, os bancos poderiam eliminar completamente os intermediários de pagamento e capturar oportunidades que somam centenas de bilhões de dólares. Os bancos, no entanto, precisam reconhecer também que podem ser substituídos rapidamente por sistemas concorrentes de circuito fechado. Os aplicativos móveis chineses WeChat e AliPay – plataformas não bancárias que processam mais de 50% do PIB da China – mostram que isso é possível. Empresas de tecnologia já presentes na América Latina, como a Rappi, estão seguindo esse caminho. Até mesmo plataformas que não processam pagamentos, como Uber e WhatsApp, representam uma ameaça iminente.
Como a interoperabilidade gera valor para instituições financeiras
Com o surgimento de fintechs e bancos digitais, as instituições financeiras tradicionais vêm repensando sua estratégia em relação à chamada abertura bancária (open banking). A Diretiva Europeia sobre Serviços de Pagamento II (PSD2) promove o compartilhamento de dados e propostas semelhantes estão sendo consideradas em outras regiões. O investimento em interoperabilidade lança as bases para a implementação do conceito de serviços bancários como plataforma (banking as a platform).
Apesar da concorrência, os bancos devem estar seguros de que continuam sendo a espinha dorsal da infraestrutura de pagamentos existente. Com a implementação da interoperabilidade plena, a infraestrutura dessas instituições fornecerá os trilhos sobre os quais empresas disruptivas podem prestar seus serviços a qualquer pessoa, em qualquer lugar, a qualquer momento. Para tanto, os trilhos devem ser abertos e inclusivos, com conectividade máxima. Nesse cenário, a ameaça competitiva se reduz e a colaboração e a ampliação ficam disponíveis para todo o ecossistema.
Em um cenário alternativo, no qual as redes de pagamento permanecem fechadas ao mesmo tempo em que os consumidores se tornam mais perspicazes, os pagamentos tendem a alcançar o status de commodity. O conceito de “pagar para pagar” desaparecerá e os bancos assistirão à canibalização dos seus volumes por concorrentes no médio prazo na América Latina. As instituições financeiras que não adotarem a interoperabilidade de pagamentos certamente perderão popularidade entre uma clientela cada vez mais sofisticada.
A interoperabilidade dos serviços de telecomunicações atualmente é vista como algo natural. Da mesma maneira, qualquer domicílio pode se conectar a uma rede elétrica interoperável e os internautas podem se comunicar livremente, a despeito do provedor usado. Com os pagamentos não deve ser diferente: no futuro, os pagamentos fluirão para qualquer pessoa, em qualquer lugar, a qualquer momento. A alta penetração dos aparelhos móveis na América Latina torna essa realidade mais imediata. Instituições financeiras que não aceitarem a mudança correrão o risco de ficar para trás.
Marco Bravo, vice-presidente para a América Latina da ACI Worldwide.